quarta-feira, 27 de novembro de 2013



POR QUE POESIA NEGRA?

Sim. Por que não: só poesia brasileira?               O que diferencia a nossa escritura da de outros escritores brasileiros? Tudo que um poeta branco fala em sua poesia como tema, também nos interessa. Toda a dor do mundo, todas as pedras nos caminhos, alegrias todas, toda tristeza, todas as escolas e formas poéticas, nos interessam. Portanto, somos iguais nas formas do fazer poético; mas, é aí que a porca torce o rabo: e o conteúdo dessa poesia? Como falarmos de nós, de nossa gente, de nossa vida deslocada do mundo? Na mesma distância com que  o escritor branco fala de nós?  Aquela imagem oficial de nossa mansidão ante a opressão, ante a escravidão, ainda permanece nos livros, e nos corações e mentes de todos nós. . A falsa mea culpa de todos. Minha máxima culpa. A nossa literatura não é um ato de contrição. Ela repudia essa nossa imagem indolente perpetrada pelo aparato canônico e suas certezas étnicas brancas. Por isso a nossa poesia se torna um divisor de águas. As águas turvas do cânone – da qual todos nós bebemos, pois é necessário; senão como dizer que ela é amarga, é um fel que apodrece a nossa alma? E a nossa alma vive numa noite de incógnita, de exclusão diante do dia, de estranheza, de estrangeirice. Essa noite de incógnita, é diferente do sentido comum da palavra “noite”. Há um mergulho ao passado que nos ronda à todos, é uma procura de si no meio das tormentas sociais . Há noites e noites. Noites de dor. Históricas, pessoais, íntimas, mais étnica, pois essa “dor” negra vivendo invisível, e de repente sendo dita aos quatros ventos do mundo;  torna-se estranha diante do outro, quando ela adentra seus corações e mentes, onde era só referência livresca que mascarava a nossa realidade, a nossa humanidade. Máscara alimentada pela alienação histórica em nossa sociedade tão múltipla, tão misturada etnicamente.
Os poetas negros brasileiros contemporâneos conscientes das suas ações sabem que o caminho pouco mudou de Luiz Gama para cá. Se ele usou a ironia e o sarcasmo, nós somos mais incisivos, mais diretos, sem perder a poesia, sem se perder nas palavras de ordem.
Fazemos essa literatura “cavando sempre no fundo” ,como bem cantou Oswaldo de Camargo em seu poema “ANTIGAMENTE”, que está publicado em seu livro O ESTRANHO:

Como quem quer cantar, mas não canta,
como quem quer falar, mas se cala,
eu venho fazendo escala
no porto de muita mágoa.

Antigamente eu morria,
antigamente eu amava,
antigamente eu sabia
qual e o chão que resvala
se o peso da gente pesa.
Hoje que sou homem leve,
sem dinheiro sem altura,
e tenho a boca entreaberta,
olhando o incêndio do mundo,
vejo a certeza mais certa:
eu estou cavando no fundo!

No fundo da ventania,
no fundo da tempestade,
no fundo do ao dormido,
no fundo de uma metade,
no fundo do desamor,
no fundo da noite longa,
meu bolso profundo abriga
o corpo de muita sombra!

Como quem quer cantar, mas não canta,
como quem quer falar, mas se cala,
eu venho fazendo escala
no porto de muita mágoa.

Tentei viajar-me longe,
sem vã bagagem, sem mala,
ficou-me junto do rosto
a parede de minha sala:
borrões de sombras antigas,
o relembrar pegajoso,
o meu sofrer de mim mesmo,
e as vestes de umas cantigas.

Antigamente eu morria,
antigamente eu amava,
antigamente eu sabia
qual é o chão que resvala
se o peso da gente pesa.
Hoje que sou homem leve,
sem dinheiro, sem altura,
e tenho a boca entreaberta,
olhando incêndio do mundo,
vejo a certeza mais certa:
eu cavo sempre no fundo!

 Colocando-me como um tataraneto de escravizados, eu, Abelardo Rodrigues, me vejo posto em um mundo hostil,  social e culturalmente repressor da minha identidade, alienado duplamente. Enquanto aquele que desconhece a sua verdadeira história, que vive iludido de que é tão igual, quanto outros brasileiros. Quem sabe de mim? O que eu penso, o que eu faço de bom ou ruim? Quando escrevem sobre mim, sobre a minha gente, como nós somos revelados nessa  literatura?
Por isso, a busca de palavras que sejam um novo espelho da minha imagem, real, verdadeira, com todos os defeitos, reencontro comigo mesmo e, por que não?, com o outro. Pois agora eu sou o agente da minha fala. Direi coisas escondidas nunca antes ditas, como neste poema da página 62 do meu livro Memória da Noite revisitada e outros poemas:

“OLHOS

O meu fugir medroso
dos teus olhos
é, ainda,
um deslize colonial
nos cantos do meu ser nascituro
O mar de dor
e a espumas flutuantes
do meu eu
são
um navio de rapina perene
preso em minhas retinas

Eu sou este ser
que grita antigos cantos
de acordar ancestrais esqueletos
marulhados no turbilhão
das velhas palavras de ordem
coaguladas em minhas costas”

A Poesia Negra Brasileira se faz por vários  caminhos. Mas a base é uma só. Não é um samba de crioulo doido. Nem um lamentar a vida que segue como um eterno 14 de maio. Eu me demonstro contra o estabelecido. A imagem veiculada e os valores colocados sobre mim são o que o outro aprendeu nos livros. E tirar suas vantagens por eu pouco contestá-lo. Daí a surpresa, o choque, quando ao ler nossa poesia um outro mundo lhe é atirado. Como neste outro poema da página 63
O PORÉM

Ninguém mais se levantou
naquele porém fulminante
do dizer não
ao espelho senhorial
Corpos desmemoriados
contorceram-se
para verem um rosto-cabeça
que caminhava no fiar
de um novo tempo

E com seu grito acordou
nossas mentes adormecidas
lançando palavras de escárnio
aos velhos livros
nos quais aprendemos
 o beabá da servidão.  

O despir-se não é gratuito. Poetas são assim. A novidade é que eu, negro em todas as matizes desse Brasil plural; me ponho nu, por mim mesmo, contra a velha imagem do não-ser, de inexistência humana que campeia pelos livros e mentes desse país. Eu falo por mim e pelos meus. Que muitos não querem nem saber, não estão nem aí. Não ouvem e não fazem desse discurso de consciência, pretexto e necessidade de mudança de vida e de ações contra o comodismo. O espectro desse espelho de mansidão é extenso, por isso voltemos a falar da poesia.
Esses poetas, ou essa poesia, como a prosa procuram questionar o status quo. Que está insidiosamente incrustado na cultura oficial, em seus valores de mobilidade. Somos desconhecidos,   não nos engolem, claro, já que nós somos parte dos contestadores desse longo baile fiscal: essa literatura de uma elite para si mesma, e para nos educar no silêncio, achando que nós estamos representados por eles em qualquer lugar do mundo. O biombo-carapuça  que desconstruímos  a cada poema ou a cada texto em prosa, cabe perfeitamente nessa cultura que nos exclui como fazedores de uma escrita que vai contra a corrente. Cabe como contestação e conscientização. Um mundo desconhecido que mostramos e, com ele posto fora do espelho da mentira e da estranheza; o nosso país terá, realmente, valores culturais menos brancos, mais verdadeiros. E não teremos aquela realidade parcial de um Brasil mostrado em Frankfurt.
E para terminar um outro poema que não faz mal a ninguém:

LEITURAS INFANTIS

Branco o livro,
sem a presença
de pretas palavras
é
uma dor latejante
em mim.

Quando suas palavras
explodem
em
intocáveis ritos brancos
nos livros didáticos
é um choque
em nossa alma
uma
descarga
elétrica
em nossa pele-criança
um raio que nos parte
ao meio
um vômito
regurgitado para
a vida inteira:

Branco,
 o livro

Abelardo Rodrigues.

Texto proferido na Unicamp, no dia 23/10/13, no Centro Cultural IEL, como parte do evento Quem tem Cor Age- Racismo Instituição Omissão e Perseguição, organizado núcleo de estudantes negros da Unicamp

Negrafias 02 Literatura e Identidade

Negrafias 02 Literatura e Identidade
Antologia de poetas negros