quinta-feira, 28 de julho de 2011

TEU SANGUE

Eu bebo, assim
o teu sangue:
bebo de beber
bebo de babar.

Rio e lavas
de eiras e beiras
do teu sangue azul,
ó poesia mal-me-quer!

Eu,
sufocado
com a lua-cacto
em minha goela
bebo teus ais
borbulhantes de
frígidas palavras
que eu regurgito
em lavras
incandescentes
de negritude.

OBTUÁRIO SOCIAL

Assim é a dor diária
em meu coração de gueto
Esguicho de sangue
da juventude negra
a escorrer pela Tv-notícia

Vidas ceifadas na
periferia do futuro
que só a consciência
salvará.

Assim é a nossa
sobrevivência diária:

Inquieto bisbilhotar
das brasas de nossa
resistência
nas fogueiras
e cinzas incandescentes
sobre a luz
do esquecimento.

CÂNTICO

Como te dizer,
Vésper negra
se as palavras
brancas
que encontro e
tenho invocado
em meu coração
moído
de interrogações,
são zumbidos
tímidos
fogos-fátuos
entrelaçados
de temores e desejos
que navegam
em meus sonhos
e
pesadelos?

A PALAVRA AMOR

Se eu rasgar
a palavra amor
o que restará
além de mim e de ti?
Nenhum som ou
gemido de vida.
Gritos guturais
de dor cânticos
de trabalho
gritos evangélicos
estrangeiros em nosso ser
todos
não sufocarão meus olhos
vivos de outros tempos

Se eu rasgar a palavra
“resgate”
Orixá nenhum será
louvado
ancestral morrerá sem
ter nascido

Se.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

QUEM LEVA GEMIDOS

Quem leva gemidos aos ventos já gordos
de memórias?
Quem dilacera carnes virgens
dos pecados que nenhum Cristo
apagou?
Quem desengoma a velha roupa senhorial
e a camufla em afagos?
Quem engorda o vento
de gemidos de eitos?
Restaurante Menino de Ouro, 03/04/81

Estou parado no espelho
dos meus olhos:
milagrosos momentos
de fitar-me

Quem diria!

o rictus do meu coração
esticadas cordas do pensamento
nos olhos rituais de minha perplexidade
um tri-espanto de ser
soma de
branco-indio-negro

Quem enxerga minha imagem
de perguntas?

Restaurante Menino de Ouro, 23/03/81

SOMBRA NO FRIO

Sombra assustada ante o brilho
da manhã
quem te persegue com melodias
de vento
Quem te enrosca em bondades
que teu grito se intimida
e se recolhe no riso gasto
Quem enovela de
de artimanhas tua dor
um espelho
de mágicas alegrias,
sombra assustada?


MINHA SOMBRA SONHA
Qual sonho sonha minha sombra?
muita luz não será
se a cor parda se revela
como um rubor de face pálida,


Muita noite será?
se nela os gatos se confundem
sob a claridade lunar?

Qual sonho sonha
minha sombra?


ALDEIAS E TABAS

Alguém poderá suspirar
que a solidão seja
vodka com limão
e também a alegria de sonhar
com o povo nas ruas
O homem comendo músicaburger
acha que o vazio do amor
seja o vazio apenas
de o futuro ser fênix
em cada esquina
sempre.
(saudades de algo não feito
que se enraíza como faca
no corpo)

Saudades de estrelas
que desapareceram
como fogo-fátuo
da memória
e aldeias e tabas.


SIESTA
No grande momento
onde vida e morte
se olham
o corpo é apenas artefato
do etéreo
e do efêmero
-o próprio-

Nesse momento
respira-se
cantos e facas
tempos de savanas
verdes

livres leves
de armas


CARRO DO ÊXITO
Meu terno
não me livra do teu olhar
soldado
em minha pele
Nem o brilho do carro
que dirijo em minha vida
me desliga
de tuas sirenes

Nem a educação branca me livra
do atrito da pele
do meu rosto
gravado em tua retina

E me impões um lugar
onde o batuque do meu andar
não seja música nostálgica
de identidade...

E me impões
um lugar
de onde eu só enxergue
a sola
de tua prepotência
endurecendo minha voz
carregada
de nãos
para a tua brancura
em minha cabeça

E me impões
um lugar
de onde matando os ratos
eu fique
a sorrir para tua bondade
cristã
que te salva do teu medo
do inferno dos meus passos


É
me impões um lugar
de onde engordo no sono
de teus olhos
um rastilho de pólvora
de meus sonhos livres.


NUM DOMINGO
Assim à tarde:
noite
em seus olhos.


Azulada de verde
a incógnita promessa
de um sol
de prazer

À tarde
um suspiro de lua-cheia
risca o céu
- jato de fogo
em meu olhar.



INVERNO DAS PALAVRAS

Gelo em meu peito
um grito de dor
Petrifico esse grito
de sangue
sibilino no seu fluir
de rio perene
camuflado em minha
alma branca

E tal é seu gelo
que minhas palavras tensas
ficarão
adormecidas
como bombas-relógio
à espera de um novo dia
que se avizinha no gueto.

E ME INDAGAS

E me indagas, ó preta
dos meus joelhos em calos
no dia-a-dia de nossa vida
desse dobrar de meus olhos
que embranquece minh’alma...
Quem afortaleza esta pulsar de raiva
quando já foi tomado de assalto
pelo medo
em dizer “não”?

E me pedes minha consciência
qual espada. Qual adaga úmida,
o meu corpo. E eu
dou risadas
de teus desejos,
ou de meu coração dobrado
- amorosamente como fera.

Espera,
que a tarde é pálida
e massacra nosso riso.

Somos botões sedentos
na penumbra
que nos agasalha
em nossos segredos.

BULA

Vaso quebrado,
esta Abolição
Nem foi à fonte
ou rolou das ribanceiras
da nossa liberdade

Veio.

E como veio, foi
e nos deixou perplexos
fora do chicote e do pelourinho:
ficamos poeira
(já éramos cacos)

Vaso quebrado
esta Abolição,
nem foi nascente
ou enxurrada:
como veio,
foi.

Assim como um tapinha nas costas,
e a bênção do padrinho branco
ou súbito vendaval;
Veio e foi.

- Vaso quebrado.



15/07/80

Garganta

Hoje,
é preciso que tua garganta
do existir
esteja limpa
para que jorre
teu negrume.

Uma garganta não é corpo
flácido
é sangue escorrendo
em leilão de cais.

Tua garganta, irmão
é uma quarta-feira
de cinzas...

Blues

A luz ao se quebrar
em tua pele
é um espelho de surpresa
duras cicatrizes de incorporam
em teu rosto:
não há becos nem vielas
nem matadouros
pra te esconderes
de teu próprio assombro

Pois,
o ritmo longínquo de correntes
lamentos de eito e senzalas
e o falso coração da casa grande
são cenas filtradas em teu olhar
que se enrubesce de medo e de lembranças

E um banzo antigo
passeia em teu coração
como vento em casas mal-assombradas...

E o medo de sete anos de azar?

Ah! A cor de tua pele, irmão
é um espelho.


08/12/80

ancestral

Oh amada!
traga-me a dor do peito
encravada na poeira das
senzalas
traga-me as costas sangradas
de meus avós
e compare-as com as nossas
e veja a abolição pregada
em nosso andar
manco
de igualdades!

Oh amada!
traga o leite que amamentou
sinhozinho
e molhe minha garganta
seca de gritos
ancestrais

Oh amada!



04/02/82

terça-feira, 12 de julho de 2011

RETRATOS NA PAREDE

Velha poesia
brasílicamente negra
onde nossos já poetas
ancestrais tatearam
as primeiras palavras-grito
imagens de nossos corpos
escravizados.

Tanta dor, ainda
nos acompanha
tremulando em nossas
línguas e mentes!
e que
nenhum descarrego
remove de nossos corações
o estalido
dos chicotes de palavras
a dilacerarem nosso espírito

Velha poesia nova
de palavrasígneas
de consciência e saber
que
sem o latejar de
nossos punhos-poemas
não sairemos da
estrada-prisão
em que estamos.
Velha poesia!

Negrafias 02 Literatura e Identidade

Negrafias 02 Literatura e Identidade
Antologia de poetas negros